quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Uma conversa interessante

Vou-vos contar algo que me aconteceu há já umas noites, mas que não tive coragem de revelar até agora: estava às voltas na cama a pensar na quantidade de trabalho que tinha em atraso, e por isso não conseguia adormecer. Mas também estava demasiado cansada para trabalhar...
Decidi que tinha de pensar noutra coisa qualquer, algo que me ajudasse a relaxar e a adormecer de uma vez por todas: tentei lembrar-me das coisas boa que me tinham acontecido no dia anterior, suprimindo todas as memórias referentes à faculdade.
Infelizmente não tinha sido um dia muito bom, porque o passara a tentar trabalhar e a ser incapaz de o fazer e a tentar descansar sem o conseguir porque não parava de pensar que devia estar a trabalhar.
"Bem, pelo menos comecei a ler um livro novo..." pensei. Esse tal livro era "A Divina Comédia", de Dante, e mesmo que decifrá-lo seja um desafio difícil de superar, eu até me estava aguentar.
Então comecei a pensar no diabo, e em toda a história de Lúcifer, o anjo caído.
Começaram a acumular-se montes de dúvidas na minha cabeça, e acabei por ficar mais inquieta do que quando estava preocupada com os trabalhos em atraso. Quem me dera poder telefonar ao Tio Grande: a cabeça dele é equivalente não a uma enciclopédia, mas a uma biblioteca inteira. Só que eram três da manhã, e eu nem quero imaginar o que ele me diria se eu lhe telefonasse a essa hora, ainda por cima para fazer perguntas sobre Satanás... Acho que me mandava para o Inferno para poder falar pessoalmente com ele. "Olha..." matutei, sorrindo no escuro " até nem era má ideia, não há ninguém que me possa responder melhor que o próprio Méfistófeles!".
-Diz lá o que é que queres saber. - ordenou secamente uma voz.
Fiquei fria e dura como uma pedra, e tive medo até de respirar ou piscar os olhos. Durante algum tempo permaneci imóvel sob os lençóis, e só depois de repetir várias vezes para mim mesma que tinha sido imaginação minha é que tive coragem de, muito lentamente, tactear a mesinha de cabeceira à procura do interruptor do candeeiro.
Quando a luz se acendeu, deparei com um homem sentado aos pés da minha cama, a olhar para mim como se quisesse que eu me despachasse e me recompusesse o mais rapidamente possível, porque o estava a fazer perder o seu tempo.
Eu tinha os olhos tão arregalados que parecia que a qualquer momento poderiam cair das órbitas. Pálida como papiro, e a tremer tal e qual uma vara verde, balbuciei:
-T-t-tomás...?
Mas o meu irmão não acudiu ao meu chamamento, até porque não o deve ter ouvido.
Entretanto, o homem revirou os olhos e soltou um breve suspiro:
-Vá lá, despacha-te mas é e faz-me as perguntas que tens a fazer...
Devagarinho, e sem tirar os olhos dele, murmurei:
-Quem és tu?
-Pfft... Sinceramente, dadas as circunstâncias, esperava que pudéssemos passar à frente das introduções e começar pelo que realmente interessa.
Durante um bocado ficámos a olhar um para o outro, e quando ele percebeu que eu não ia dizer mais nada até ele me responder, retorquiu:
-Eu sou Satanás.
-O diabo?
-Sim.
-Aah...
Não tinha nada haver com a imagem do terrível Príncipe das Trevas que eu conhecia: não tinha chifres, nem patas de boda, nem asas de morcego. Ainda me inclinei a ver se via uma cauda, ou um tridente encostado à borda da minha cama, mas nem sinal. Era um homem perfeitamente normal, e bonito, até.
O candeeiro irradiava uma luz fraca, e por isso eu não sabia se o seu cabelo era negro, ou ruivo, e... Bem, não se imaginei ou se vi, mas pareceu-me que a madeixas se agitavam continuamente, de uma maneira muito subtil, como se fossem labaredas. Os olhos eram iguais aos de Blimunda, porque era impossível dizer que cor era aquela: tanto me pareciam cor-de-laranja, flamejantes, como cinzentos, pálidos como gelo.
-Então! - gritou, enfurecido - Querias saber tanta coisa, e agora ficas calada?!
Atrapalhei-me e esqueci-me de todas as perguntas. Desejei desesperadamente lembrar-me de uma, qualquer uma, mas não me ocorria nada.
Por fim, disparei:
-Porque é que foste expulso do Céu? O que é que tu fizeste? - estremeci e gaguejei umas quantas sílabas, antes de corrigir: -O que é que o senhor fez para ser expulso do Céu?
-Eu ambicionava o poder de Deus.
-Sim, mas... porquê? Tu eras o braço direito dele! Ele fez-te o mais bonito e o mais forte de todos os querubins, Ele... Ele adorava-te!
-Sim, é verdade. Só que, à medida de o tempo passava e eu observava a maneira como Ele regia o Seu reino, apercebia-me de coisas ultrajantes e comecei a pensar que ou o Seu propósito fora corrompido, ou então nunca tínhamos tido o mesmo objectivo.
»A injustiça com que tratava as coisas que fizera repugnava-me: como ousava o Todo-Poderoso construir uma criatura dotada de tantas características e capaz dos mais diversos comportamentos e sentimentos, se depois resolve que grande parte das suas capacidades são... "pecaminosas"?
-Espera... O que tu queres dizer é que achas que se Deus queria que fossemos, humm... "Perfeitos", então devia ter-nos logo "perfeitos"?
-Exacto. Que direito tem ele de criar um ser "imperfeito" e depois exigir-lhe que seja "perfeito"?
-Pois... Pois, acho que tens razão: ele não tem o direito de o fazer, até porque quando morremos julga-nos cá de uma maneira... Os que se portaram assim para o Paraíso, os que se portaram assado para o Inferno.
-Precisamente! - cruzou a perna e sibilou: -Tenho razão, não tenho?
-Humm, não sei... - hesitei, recordando-me de quem ele era - Conta lá o resto da história.
-Bom... Como já disse, eu estava indignado com a maneira como Ele subjugava a própria criação, convertendo-a num rebanho de cordeirinhos submissos. - proferiu estas ultimas palavras com desdém, arreganhando o canto da boca - Agora falando exclusivamente do Ser Humano... A mim agrada-me a complexidade da vossa espécie, e posso afirmar com toda a honestidade que admiro cada uma das vossas múltiplas facetas. Custava-me muito ver-vos reduzidos ao pouco que ele vos queria tornar, percebes?
-Acho que sim...
-Eu queria dar-vos a liberdade de que vocês precisam para serem tudo aquilo que são, mas a única maneira de o conseguir era destronar Deus, e ocupar o Seu lugar. Revelei a alguns anjos o que pensava do Todo-Poderoso, e muitos concordaram em apoiar-me e à minha causa. Eu e os outros rebeldes enfrentámos o Senhor e aqueles que lhe permaneceram fiéis, mas infelizmente...
-A batalha correu mal para o vosso lado. - terminei.
-Sim, e fui expulso do Paraíso, juntamente com os meus seguidores.
-Ok... Se eu entendi bem, tudo o que fizeste foi por amor à humanidade, certo?
-Sim.
-Então porque é que agora torturas as almas condenadas por Deus? Segundo o que tu me disseste, opões-te ao julgamento das nossas acções, porque isso nos limitava. - ele começou a abrir a boca, para responder, e erguer muito lentamente o dedo indicador, como se quisesse acrescentar mais algum argumento ao seu discurso - Então por que é que nos castigas pelos nossos actos?
-Issooooo...É um mito. O "Inferno" é na verdade um lugar onde os seres humanos que optaram por viver de acordo com aquilo que são, podem também desfrutar da morte como aquilo que são, para toda a eternidade.
-Como "pecadores"?
-Não, como criaturas inteiras, com "virtudes" e "pecados"! - exclamou ele, elevando um pouco o tom de voz.
-Queres então dizer que no Inferno ninguém é torturado, simplesmente faz o que bem lhe apetece e dá na gana?
-Sim. - respondeu, com uma suavidade forçada.
-És o Diabo; estás a mentir.
-Menina! Que preconceituosa!
-Olha, eu gostava era de poder falar com Deus! Também queria perguntar-lhe umas coisinhas e Ele sim, dizia-me a verdade de certeza absoluta!
-Ah! Fia-te nisso... Deves pensar que ele não aldraba um monte de pessoas, para conseguir o que quer...
-Não lhe dês ouvidos, Carolina! - ordenou uma voz ao meu lado, fazendo-me saltar na cama.
Tratava-se de um jovem de feições delicadas, com uma densa cabeleira loira que lhe caía em largos caracóis sobre a testa. Na altura não reparei, mas aposto que tem os olhos azuis.
-Oh meu Deus!... - balbuciei.
Aos pés da cama, Mefistófeles suspirou e abanou a cabeça de um lado para o outro com uma expressão de aborrecimento.
-Não propriamente... - disse o rapaz ao meu lado - Sua Santidade está sempre muito ocupada, e por isso, apesar de ser omnipresente, só se encontra materialmente com um dos indivíduos da Sua criação muito raramente. Eu sou o teu Anjo da Guarda, Miguel. - apresentou-se.
-Oh! Bem, prazer em conhecer-te Miguel. Hã... Ouve, desculpa-me a ousadia, mas... - pensei durante um bocado se seria uma boa ideia fazer aquela pergunta e apesar de concluir que não o era, deduzi que ele seria indulgente, uma vez que era um anjo - ... Deus não pôde vir?
-Bem... Este encontro não estava programado, pois não? - atrapalhou-se Miguel - Para além de que, como já te expliquei, Deus Todo-Poderoso costuma estar demasiado ocupado para comparecer neste tipo de... reuniões.
-Sim, mas ele veio. - disse eu apontando para o diabo. - Tenho a certeza que também anda sempre muito atarefado, e que podia estar estar agora mesmo num lugar bem mais interessante do que o meu quarto... Como uma missa satânica, por exemplo.
-Por exemplo, por exemplo... - concordou Satanás, assentindo com a cabeça.
-Carolina, para ele não há sítio mais interessante do que aquele onde se encontra uma alma que possa ser corrompida.
-Há uma data de almas assim no mundo!
-Uma delas tinha de ter o azar de se encontrar com ele frente a frente e foste tu. Ele não veio aqui para te esclarecer, mas sim para se desviar do bom caminho. Ignora-o, e escuta-me a mim, que sou o teu Anjo-da-Guarda e quero o teu bem.
"Não tens feito um trabalho muito bom" pensei, mas preferi calar-me: pelo menos agora ele estava ali:
-Então vieste para responder às minhas perguntas?
-Bem...
-És ao menos capaz de responder a algumas delas em nome de Deus?
-Suponho que sim... - cedeu ele, depois de olhar de soslaio para o Diabo. -Então diz-me lá, o que é que tu queres saber?
-Gostava de perceber por que é que Deus não nos fez logo "perfeitos", ou melhor, como Ele queria que fôssemos.
-Deus dotou todas as criaturas de livre arbítrio: a Sua vontade é que elas escolham praticar o bem, em vez do mal.
-Mas que escolha é essa, se, ao optar por praticar aquilo a que se chama "mal", se é recambiado para o Inferno depois de se morrer?
Lúcifer sorriu para o anjo, como se o desafiasse a responder àquela pergunta, e Miguel demorou algum tempo a pensar na resposta:
-Carolina, não achas que quando tomamos uma decisão, devemos ter consciência das respectivas consequências e ser responsabilizados pelas nossas acções?
-Sim...
-Aí tens a resposta. - concluiu ele, muito feliz consigo mesmo, piscando-me o olho.
-Pois mas... Uma eternidade de sofrimento? Isso é sádico! Não será um castigo demasiado severo?
-Achas que um assassino deve ficar impune? Ou um ladrão, ou um traidor, ou um adultero, ou um promiscuo?
-E se um homem matar para salvar alguém? E se o ladrão roubar para alimentar a família?
-São casos muito complexos, mas sempre julgados com justiça: dependem de uma série de factores... Depende de quem o homem mata e de quem o homem salva, depende de quem rouba e para quê...
-Então uma pessoa promiscua, que apesar de o ser, não magoa ninguém?
-Se essa pessoa se arrepender, tal como todos os outros pecadores, será perdoada.
-E se ela se quiser arrepender, porque sabe que deve fazê-lo, mas não conseguir?
-É impossível uma pessoa querer arrepender-se e não o conseguir... Ou o que ela quer é o perdão concedido sem arrependimento, ou então está arrependida, e ainda assim, pelos mais variados motivos, não o quer aceitar.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O mundo encantado dos brinquedos é no Continente onde tudo tem mais fantasia!

Não aguento mais...
Estes últimos anos têm sido um pesadelo, e eu não aguento mais!
Nunca me tinha passado pela cabeça que a Popota fosse um risco para a minha carreira e para mim: quando a conheci, não passava de uma miúda gorda e mimada que vivia com os pais no Zoo de Lisboa, sempre a tagarelar sobre as porcarias que via na MTV.
Foi uma surpresa quando um dia liguei a televisão e a vi a anunciar os brinquedos do Modelo... Se era mesmo isso que ela estava a fazer. Não aparece um único brinquedo naqueles anúncios...
Seja como fôr, contactei imediatamente o meu agente, que me tranquilizou dizendo que a Popota era uma fraude: não era ela a cantar nos anúncios, limitava-se a fazer play back (é por isso que nunca abre a boca quando aparece em programas transmitidos ao vivo), e, apesar de ela até dançar bem, era necessária uma equipa inteira especializada em efeitos especiais para não se ver a sua celulite a abanar.
Senti-me melhor, mas passados poucos dias começaram a pressionar-me: ao que parece, o que os miúdos querem é ver uma gaja boazona a abanar-se nos anúncios natalícios (ou talvez os pais, já que são eles que fazem as compras), e as vendas começaram a piorar para o Continente...
Ameaçaram-me: "Ou fazes as operações, ou perdes os emprego! Há montes de avestruzes por aí; mais novas que tu!".
Este é o meu emprego... Há já muitos anos. Por isso, aceitei.
Submeti-me a várias dietas... A maioria baseava-se em passar fome e vomitar. Comecei a tomar comprimidos de emagrecimento e a praticar exercício físico intenso.
Fiz lipoaspirações, implantes mamários, e tirei uma série de costelas, para ficar com a cintura mais fina. Até cortei a cauda...
Mas o que me custou mais me custou, foi amputar as minhas pernas e substituí-las pelas daquela pobre modelo que raptaram... Sei que a mataram, e não há um dia que não pense nela.
Passei o ano inteiro a aprender a andar novamente, e, quando as filmagens para o anuncio começaram, descobri que este ano, em vez de trabalhar com crianças, ia lidar com jovens adolescentes com aspecto de "xungas".
Apesar de tudo, fiz o que me pediram...
E, mais uma vez, a Popota arrasou. Apareceu nas roupas da estrela mais extravagante do momento, a dançar e a fingir que canta, e, não sei como, teve muito sucesso com isso.
O meu agente já me telefonou, para me avisar dos sacrifícios que deverei fazer durante o próximo ano.
Chega.
Quando lerem isto, já estarei morta. Uma vez que não tenho familiares próximos, deixo todos os meus bens à minha grande amiga, A Vaca que Ri.

Leopoldina.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Desde que comecei a estudar animação, aprendi que a perfeição tem um limite: o da minha paciência.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Ouve o meu sussurro,
Como o ronronar de uma Leoa...
Ve o brilho nos meus olhos escuros,
E ves a Lua numa noite negra!
Toca a minha pele morena,
E sente o calor do Sol
Na palma da tua mão!
Olha para mim quando ando,
e o abanar das minhas ancas
lembrar-te-a uma dança...

Eu tenho muitos encantos,
Meu querido:
Sou Sol, Calor
e Euforia!

Anda, vem!...
Para que has-de querer Prata
Quando podes ter Ouro?

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O Paraíso

Hoje enquanto viajávamos de metro, eu, a Catarina e a Leonor recordamos o que pensávamos acerca do Paraíso quando éramos pequenas.
Catarina deve ter ouvido alguma vez dizer que "os corações bons iam para o céu"... Pelo que imaginou um bando de corações alados a voar sobre as nuvens.
Mas eram todos iguais uns aos outros, pelo que ninguém se reconhecia e eram muito infelizes.
Catarina achava isto tão triste que chegava a chorar.
Leonor apenas nos disse que todas as noites rezava para que os pais fossem para o céu, o que aos meus ouvidos soou um bocado mal: parecia que desejava que morressem!
Eu achava que o céu ate devia ser bom, porque segundo a minha mãe quando as pessoas iam para la voltavam a ficar novas e bonitas, alem de que se podia voar.
So ficava as vezes preocupada a pensar se não seria aborrecido, porque só havia nuvens e mais nada, e tinha mesmo medo que as pessoas não tivessem acesso ao céu dos cães, porque se assim fosse eu não podia ir brincar com o Ondin.
Consolava-me pensando que se no céu tudo era bom, então eu e o Ondim não podíamos estar separados por que ficaríamos tristes.
Por outro lado, havia pessoas que tinham medo de cães (uma coisa que eu achava ridícula) e portanto para elas seria mau se tivessem de partilhar o seu céu com cães.
Talvez Deus e Jesus me deixassem a mim e as outras pessoas que gostavam de cães ir ao céu deles...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Eu tento, mas...

Hoje, a caminho da faculdade, passei por um mendigo que estava a dormir no passeio.
Não e novidade nenhuma, todos os dias vejo imensos e já não fico triste nem com pena: não sinto nada.
Mas desta vez, eu trazia comigo uma sandes, para não ter de comprar lanche na faculdade.
Hesitei um bocado, mas acabei por tirar o pão da mala e ajoelhar-me junto ao homem.
-Ei. - chamei. -Ei!
Segurei-lhe os dedos, mas ele não se mexeu. Estava gelado.
Um pouco assustada, fiquei imóvel por uns instantes, a ver se ele respirava.
Quando percebi que estava bem, coloquei-lhe a sandes na mão estendida sobre a calçada, tendo o cuidado de a prender entre os dedos dele. Depois, ergui-me e continuei o meu caminho.
Estava muito feliz comigo mesma, a pensar na surpresa do homem quando acordasse e desse com uma sandes de doce caseiro nas mãos, quando me cruzei com um outro mendigo, que, com um chapéu na mão, pedia a minha ajuda.
Eu já não tinha nada para lhe dar.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

"Quando eu era jovem e louco..."

Toda a gente me diz que esta é a melhor parte da minha vida. Será que o resto é assim tão mau?
Não quero dizer que a minha vida agora seja má... É verdade que não tenho muitas preocupações: faculdade, carta de condução, e, talvez, dentro de pouco tempo, um empregozito não são nada comparados com as chatices dos adultos... Divirto-me, sim, e às vezes posso ser um bocadinho irresponsável...
Mas sei que uma das coisas mais importantes para a minha felicidade são os meus sonhos. è lutar por eles que me faz feliz agora. É imaginar-me a concretizá-los que me dá esperanças de ser ainda mais feliz.
Hoje, na aula de Estudo de Arte Moderna, a professora repetiu que esta a melhor parte da nossa vida, e explicou-nos porquê: as pessoas iam desiludir-nos, muitos poucos de nós iam ter boas carreiras...
Depois de um longo suspiro, pensei que certamente o meu ordenado seria muito mau, o meu horário sobrecarregado e que nunca teria nem meios nem tempo para fazer as coisas de que gosto, nem para me dedicar a mim própria e às pessoas de que gosto.
Quando saímos da sala Catarina sugeriu chumbarmos o resto da nossa vida para nunca termos de fazer nada além de estudar.

"Quando eu era jovem e louco..."

Pois bem, eu sou jovem. Se a minha idade me dota de alguma loucura, vou aproveitar ao máximo a coragem que me dá a inconsciência para me dedicar a um futuro praticamente impossível.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Entre Cães

É um desafio brincar com os meus cães, porque são muitos e porque temos apenas dois brinquedos: um osso sujo e uma bola vazia (que mais parece um bocado de plástico murcho). Não vale a pena comprar mais, porque depressa se perdem ou estragam, além de que eles facilmente se entretêm com paus, pinhas (o brinquedo favorito da Sissi) e pedras (a perdição do Dosty). Aliás, nem costumam ligar muito aos brinquedos tradicionalmente de cães, mas esta tarde, quando peguei no osso e na bola e fui ao encontro deles, ficaram estáticos, com as orelhas viradas para a frente e os olhos fixos em mim - eu tinha o osso e a bola. Se o osso e a bola estivessem no chão, não quereriam saber deles, mas como eu os tinha, já todos os queriam.
Aproximaram-se num instante, o Dosty e a Mel aos saltos, o Alex a abanar o rabo com tanta força que sacudia o corpo todo, e a Nicky muito atenta.
-Vocês querem a bola? - perguntei-lhes, agitando-a no ar, enquanto eles a seguiam com os olhinhos nervosos - Querem? E o osso? - desafiei, esfregando o osso de pano imundo no nariz de cada um deles, sem deixar que o apanhassem.
Incapazes de se controlarem, Dosty e Mel saltaram para apanhar os brinquedos, e também eu tive de saltar para trás para lhes escapar.
-Pois-eu-não-vos - cantarolei, enquanto batia levemente como osso no focinho de cada um- dou. - terminei, quando Alex fechou a boca com um som seco, tentando em vão apanhar o brinquedo.
A Mel já tremia de excitação, e estavam todos tão próximos de mim que quase não me conseguia mexer, pelo que atirei a bola.
Dosty e Mel largaram a correr atrás dela a toda a velocidade, e em menos de nada Dosty agarrou-a (ele é o mais rápido de todos, e é quase sempre ele que apanha os brinquedos)e afastou-se, com a cauda no ar a abanar, todo satisfeito.
Mel correu ao meu encontro, na esperança de apanhar o osso, que os outros tinham ficado a olhar.
Afastei-me e atirei-o para cima. Com os focinhos virados para o ar, os cães viram onde o osso ia cair, alguns chocaram uns com os outros, e quando ele já estava próximo, ergueram-se nas patas traseiras.
Nicky apanhou-o, é normalmente ela quem apanha os brinquedos quando os atiro assim: é uma Grand Danois, muito maior que todos os outros, que são Goldens e Labradores Retriever.
Muito contente com o seu feito, Nicky ergueu o focinho exibindo o osso.
Mas o osso é o brinquedo favorito da Mel, e ela não ia desistir sem luta: tentou uma e outra vez tirar o osso à Nicky, que por duas vezes a fintou, mas à terceira é de vez e Mel conseguiu tirar-lhe o brinquedo.
Tristíssima por lhe terem tirado o osso, Nicky correu para mim e encostou-se com força, obrigando-me a recuar uns quantos passos para não cair sobre o seu peso, enquanto me lançava um olhar queixoso: "Olha, dona, viste o que ela fez?"
-Vá, Nicky, os brinquedos são de todos, têm que os partilhar. - disse-lhe.
Entretanto, Dosty apercebera-se de que a Mel tinha o osso.
Ora, aos olhos do Dosty, aquilo não estava certo: mesmo que ele estivesse a brincar com a bola e não com o osso, ninguém podia brincar com o osso. Ponto final.
Ultrajado, largou a bola e começou a ladrar na minha direcção: "Olha! Olha, dona! A Mel tem o osso! Não é justo, o osso é meu, não é dela, e a bola também, é minha, e de mais ninguém, portanto não quero os outros cães a brincar com eles, ouviste? Vai lá tirar-lhe o osso, dona!"
ZÁS! Enquanto o Dosty se queixava, Alex tirara-lhe num instante a bola e fugira com ela.
Quando Dosty se deu conta, olhou espantado para o outro, que corria muito feliz na minha direcção com a bola na boca.
Indignado, Dosty seguiu-o, e quando Alex se sentou à minha frente, exibindo o brinquedo como se fosse um troféu, Dosty tornou a ladrar: "Mas o que é isto!? Já viste, dona? Primeiro, brincam com o meu osso, agora tiram-me a bola e eu não tenho nenhum brinquedo e são os dois meus! Tira-lhes os brinquedos! Tira-lhes!" entretanto, o Alex abanava-se, a olhar para mim com o ar mais amoroso e vaidoso do mundo: "Olha, dona, olha para mim, estás a ver? Eu tenho um bola, estás a ver dona? Eu tenho uma bola!".
Só a Sissi, a Élis e a Nicol não se juntaram à brincadeira: A Sissi é demasiado velha, e só muito lentamente se consegue arrastar, hesitante e a coxear, para onde quer que seja; a Élis é demasiado fina para se misturar com a ralé, recusa-se a participar nestes jogos, e a Nicol limita-se a seguir-me para todo o lado, parando quando eu paro e sentando-se quando percebe que vou ficar algum tempo no mesmo sitio (ocasionalmente, pode aproveitar para me lamber as pernas).
São uma boa companhia...

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Calendário do Estudante

Dizem que e no Ano Novo que as pessoas fazem mais planos, projectos, estabelecem objectivos...
Mas eu, como muitos outros estudantes, apercebi-me que para mim já não e bem assim: o inicio do ano lectivo e que e perfeito para estabelecer metas.
Na verdade, e no inicio do Ano Lectivo que começa o Ano.
Depois de tanto tempo a estudar, o meu calendário ficou completamente distorcido: não existe Inverno, Primavera, Verão e Outono... Existem Ferias; Primeiro Semestre (outrora primeiro período), com um evento muito especial pelo meio, que são as "Ferias de Natal" e o Segundo Semestre (antes o segundo período), durante o qual celebramos o "Carnaval" e a "Pascoa" (a qual, antigamente, se seguia o terceiro período).
Assim, o nosso calendário e um ciclo onde ferias e semestres ou períodos se seguem uns aos outros alternadamente, onde os meses, as semanas e os dias apenas servem para determinar a data de algum teste, exame, ou entrega de um trabalho, ou ate mesmo os dias em que podemos dormir mais umas horas... As festas e feriados são pausas ideais para descansar ou adiantar trabalho, que surgem como davidas no nosso extenuante calendário e que não tem outro significado senão o quanto nos são úteis. Quanto as estações do ano, das quais raramente nos lembramos, não passam da temperatura e das condições meteorológicas de cada dia, e servem apenas para determinar que roupa vestimos ou a que lugares podemos ir agora com a família e os amigos.
Bizarro, não e?

Ps: Estive à uns dias com um primo meu, e, ao ouvi-lo falar, apercebi-me de que para ele não existem idades, mas anos lectivos. Por exemplo, em vez de dizer: "Quando eu tinha onze anos..." diz: "quando eu estava no sexto ano..." . Assustador, não?!

sábado, 21 de agosto de 2010

Decisões, decisões...

Como qualquer pessoa, gosto de pedir a opinião dos outros acerca de certas e determinadas coisas. Ontem, no entanto, excedi-me, e o meu irmão, a quem eu ia fazendo perguntas, irritou-se e disse-me:
-Fogo, Carolina! Cada vez mais acredito naquela historia de as mulheres serem umas indecisas e os homens tomarem as decisões delas!
Protestei imediatamente, dizendo que aquilo não era verdade, pelo que ele me deu o seguinte exemplo: um casal entra numa loja. Então, a mulher vê dois vestidos lindos:
-Ai, sao tao giros!...
-Hum-hum...
-Qual e que tu achas mais bonito?
-Aquele.
-Hmmm... Sera que o outro me fica melhor?
-Não.
-Tens a certeza?
-Sim. Leva esse.
A caminho da caixa, a mulher diz:
-Sera que e muito caro?
-Não, não e.
-Eu acho um bocadinho...
-Então eu pago.
-Não, não, não!... Va, deixa estar, vamos embora, vamos...
E saem da loja sem levar nada.
-Entretanto conseguiram fazer um homem passar quinze minutos dentro duma loja! - exclamou o Tomas.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

E no fim, não havia ananás...

Acabei de jantar... Comi tanto, tanto, tanto, que me dói a barriga e não me apetece fazer nada ate me sentir mais leve.
Depois de arrumar os talheres, o meu irmão disse-me:
-E uma pena o David não estar cá. Podia ajudar-nos a acabar de comer, como daquela vez...
O Tomas referia-se a uma certa noite, mais ou menos há um ano, quando ele, o nosso primo Alexandre, e David comeram três quilos de choco frito.
Estávamos todos juntos de ferias, e decidimos ir comer fora. No restaurante, ao pousar a bandeja cheia de choco frito diante dos três rapazes, o empregado de mesa desafiou-os:
-Se vocês conseguirem comer isso tudo, eu pago-vos a sobremesa!
-Paga mesmo? - perguntou imediatamente o David.
-Pago, sim. - garantiu.
-Olhe que nos comemos! - ameaçou o meu amigo.
O empregado riu, e, duvidoso, tornou a dizer que se eles conseguissem comer tudo, lhes pagaria a sobremesa.
Cada um se serviu ate o prato ficar a abarrotar, mas a bandeja continuava cheia. Comeram como leões, repetiram e repetiram outra vez, e, quando se começaram a sentir cheios, desapertaram os cintos (o David primeiro, encorajando os outros dois que nunca tinham feito tal coisa num restaurante).
Impressionadas pela determinação dos rapazes, eu e a minha prima Marta decidimos ajuda-los: comemos um bocadinho de choco (quando o empregado não estava a ver) e escondemos dois ou três pedacinhos pequenininhos debaixo dos restos do nosso arroz e salada.
Apesar de tudo, Alexandre começava a perder o animo:
-Não consigo mais... - queixou-se. Foi muito estranho ouvi-lo dizer isto, uma vez que o Alexandre come mesmo, mesmo muito.
-Alexandre... - disse-lhe o David, pousando uma mão no ombro do meu primo - Há alturas nas vida de um homem... em que ele tem de decidir se quer ou não fazer algo realmente estúpido.
Disse-lhe aquilo como se fosse um pai a falar com um filho.
-O David! - exclamei.
-O que e? - tornou ele, voltando-se para mim -O Carolina, quer dizer... Qual e a piada de chegar a escola e contar aos amigos: "ah, eu ontem podia ter comido muito, mas comi poucochinho para não ficar com dor de barriga"... Não tem piada nenhuma! E muito melhor dizer: "E pá, eu ontem comi imenso, enchi-me como um texugo só p'ra comer uma sobremesa"!
Com este incentivo, o Alexandre decidiu-se a comer mais um pouco... E conseguiram!
Espantado, o empregado pegou na bandeja vazia e levou-a, enquanto os três se punham a pensar no que iriam pedir para sobremesa:
-Eu só quero ananás, para desenjoar. - disse o David.
-Olha que há ali bolos com muito bom aspecto... - adverti-o.
-Não, não, Carolina. Ananás.
Quando o empregado regressou a mesa, decidido a cumprir a sua promessa, o David perguntou:
-Tem ananás?
-Não. Temos outras frutas, e muitos bolos, mas ananás não.
-Eich! - fez ele, enquanto baixava o olhar e eu me partia a rir.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Ai, ai, David...

Estive a pouco tempo com o meu amigo David. Há distancia, ele viu-me a olhar a minha volta, a procura-lo, e no entanto não se mexeu.
"Será que e aquela, a Carolina?" pensou, hesitante. Depois, segundo me contou, olhou para as minha pernas e decidiu-se: "E a Carolina."
Ao saber disto, perguntei-lhe:
-David, há quatro anos que me conheces! Como e que e possível que me reconheças pelas pernas e não pela cara!?
-Quem vê caras não vê corações... - respondeu.

domingo, 18 de julho de 2010

Quem diria

Há alguns anos, quando eu era criança, tinha uma casa de bonecas, equipada com a mesma mobília que tem uma casa verdadeira: camas, mesas, cadeiras, ... e uma pequena televisão, com um autocolante de duas torres imensas a imergir de uma cidade, a fazer de ecrã.
Quando os primos brincavam, o programa preferido dos nossos brinquedos era "O programa das Torres que Caíram". As barbies e o Action Man não perdiam um único episódio, e quando mais tarde se encontravam com os amigos, falavam sempre sobre a série.
Adivinhem quais eram torres...
World Trade Center.
Foi arrepiante quando anos mais tarde elas caíram mesmo...

Bons velhos tempos...

Penso que eu, o meu irmão e os nossos primos éramos crianças bastante organizadas. Exceptuando os nossos quartos, gostávamos de ter tudo no sítio, cada coisa no seu lugar. De tal maneira que chegámos a numerar as nossas brincadeiras.
Parecia uma ideia brilhante, como se atribuir números nos facilitasse a vida (para quê dizer: "vamos brincar às barbies e aos action men" quando: "querem brincar à brincadeira três" é muito mais fácil?). Além do mais, fazia uma mera brincadeira parecer uma coisa séria (os números estão sempre relacionados com coisas sérias), quase de adultos. E até parecia um código secreto, que mais ninguém entendia. Isto agradava-nos particularmente: na altura, pensávamos que se falássemos em frente aos adultos com palavras que eles não compreendiam, eles iam pelo menos tentar descobrir o seu significado, como se lhes interessasse para alguma coisa as parvoíces que nós andávamos para ali a dizer e não tivessem nada mais importante ou interessante para fazer.
A ideia foi por água abaixo quando nos apercebemos de que nós próprios não conseguíamos decorar os números de todas as brincadeiras:
-Querem brincar à brincadeira nove?
-Quê, ao Monopólio?
-Não, ao Quarto Escuro!
-Pensava que o quarto escuro era a brincadeira dois...
-Não era a doze?
Foi uma confusão. Dentro de pouco tempo voltámos a referir-nos às brincadeiras como costumávamos fazer antes de nos termos lembrado de numerá-las, até porque já só sabíamos o número de uma brincadeira; a brincadeira sete: descansar.
Era aquela a brincávamos mais, nas tardes de Verão em casa dos avós. Isto porque o calor nos fazia moles, e às quatro da tarde era a hora da sesta da avó. Era um momento sagrado para ela, pelo que não tolerava o menor som.
Assim, íamos os quatro para o quarto e olhávamos uns para os outros até um de nós dizer:
-A que é que querem brincar?
-À brincadeira sete.
Então deitávamos-nos todos na cama de casal, três com a cabeça nas almofadas e o ultimo a chegar à cama aos pés dos outros, porque a cama não era suficientemente larga para todos.
Era uma brincadeira muito aborrecida (o Alexandre não gostava nada dela) mas às vezes até sabia bem...
Hoje, ao lembrar-me dela, apercebi-me de que o seu numero corresponde ao da perfeição...
Éramos geniais, mesmo sem querermos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

José Saramago

José Saramago morreu.
Que estranho... É uma sensação semelhante à que tive quando ouvi nas noticias que Michael Jackson tinha morrido: parece impossível. Pessoas dessas não morrem.
Os amigos e a família decerto ficaram desolados, e os inimigos, que não lhe faltavam, devem ter suspirado de alívio ou até rido. Acalmem os ânimos, que dentro de muito ou pouco tempo, pode ser que tenham de se encontrar com ele, e a partir daí é para sempre. Os restantes, ficaram apreensivos uns, satisfeitos outros.
As livrarias expuseram a obra de Saramago nas montras e dentro de algum tempo os livros hão-de ser vendidos por mais alguns euros juntamente com jornais ou em fascículos.
Vivo, nunca deixou que se esquecessem dele, e agora que está morto, a sua obra, o programa de Língua Portuguesa por que se regem as escolas, e uma série de outras coisas, hão-de certificar-se de que continuaremos a lembrá-lo.
Não tenho muito a dizer dele como pessoa. Gosto muito da sua honestidade. Há quem diga que ele provocava, como uma criança, para depois ver o que acontecia, mas a mim parece-me que não era homem para isso: não precisava disso. Escrevia o que pensava, e pronto, o que os outros achavam do assunto não lhe interessava.
Quanto há sua obra, o que mais admiro são os temas, e a maneira como são tratados: a cabeça de José Saramago, parece-me, funcionava como um simulacro. "E se toda a gente ficasse cega?...", "E se a Península Ibérica se separasse do resto da Europa?...".
O seu estilo, também é de louvar, não é qualquer um que escreve como ele. Porém, é o mais fiel à fala e ao pensamento: sem pontuação, e cheio de divagações. Muitas vezes, é o desenvolvimento de uma reflexão...
Não tenho muito mais a dizer dele. Só posso dizer o que muita gente diz: que é uma pena, e que Portugal perdeu um grande escritor...
Oxalá alguns se tivessem dado conta antes.
Há algumas semanas, estava no jardim a estudar para a frequência de história da arte, rodeada dos meus cães, quando me apercebi de dois melros que voavam muito perto do chão, piando alto e sem parar.
Dois dos meus cães levantaram-se num salto e correram atrás deles. Não me preocupei: são pássaros. Sabem voar e são rápidos. Dois cães preguiçosos como os meus, que se cansam depois de correr uns metros, não são perigosos para melros.
Só que no momento seguinte, o meu tio, que vinha carregado com um cesto de roupa, disse:
-Carolina, acho que o Alex e a Nicky apanharam um pássaro!
Voltei-me na cadeira e vi Nicky correr vitoriosa para mim, segurando algo entre os dentes:
-Nicky, NÃO! -gritei-lhe.
Imediatamente a cadela largou a sua presa e ao ver-me correr para ela fugiu.
Era um melro bebé.
Tirei-o do chão, segurando a cabecinha frágil enquanto lhe murmurava que estava tudo bem.
O pássaro fechou muito devagar o bico, e encolheu as patas como se fosse uma pessoa a encolher-se de dor. Lentamente, fechou os olhos.
Por fora, parecia bem. Só se diria que morrera porque os meus cães o tinham apanhado por causa das penas, que estavam encharcadas de baba. Devia estar partido por dentro, ou então foi o coração que não aguentou.
Imagine-se o que seria, estarmos nós desprotegidos e incapazes de fugir, e vir um bicho enorme caçar-nos, prender-nos entre os dentes cortantes e esmagadores, apertando-nos entre o céu-da-boca e a língua e sufocando-nos com o seu bafo imundo, diante dos olhos dos nossos pais, que observavam tresloucados e impotentes!
Esperei um bocado com o corpo nas mãos, na esperança que tivesse desmaiado.
Mas nada aconteceu.
Era tão pequenino ainda, coitado... O ventre ainda estava coberto de uma penugem fofa em vez de penas, e a pele era lisa debaixo das asas e no pescoço.
Voltei a pousá-lo no chão e enxotei os meus cães. Depois, fui-me embora e continuei a estudar. Dentro de pouco tempo, as formigas começariam o seu trabalho.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Que vontade de gritar! Tanta, que me dói a garganta de não poder fazê-lo!
Que raiva! Porque é que ele não está aqui?! Apetece-me tanto bater-lhe, por que raio é que ele não está aqui?!
Cobarde! Cobarde! Anda cá enfrentar-me!
Tens medo? Tens? De mim?!
Anda cá, e diz-me na cara que queres que te dê satisfações! AH! Antes, tinhas tu de dizer-me por onde tens andado, todo este tempo! Tinhas de contar-me onde moras, com quem, e porque é que foste embora!
Cobarde, cobarde! De certeza que começavas a choramingar, a lamentar-te e a dizer que a culpa não era tua!
E queres dinheiro? Queres?! Pois eu não o tenho, pai, porque tu mo roubaste! Ladrão! A mim, à minha mãe, e ao meu irmão! Tu é que tens de nos dar dinheiro!
Ele ia desaparecendo e tu ias dizendo: "não sei." Sabias! Mentiroso, roubaste-o tu!
Anda cá, anda!
Vou humilhar-te, vou magoar-te! Hei-de marcar-te para que nunca te esqueças!
Dois cortes numa bochecha, para que sempre que os vejas te lembres: tens dois filhos. Aah, sim! Era isso que eu queria fazer, era isso! Estragar-te essa carinha de gostas tanto!
Não vales nada, nada! Antes orfã que tua filha!
Que vergonha, que revolta, que raiva!
Quem me dera não depender de ti! Do dinheiro sujo que, muito contrariado, tu me dás todos os meses!
Agora não posso, mas sabes o que vou fazer um dia? Vou destruir-te!
Vou encurralar-te, como estás a fazer connosco! Vou-te tirar tudo, tudo! Hás-de viver pobre e miserável, como tu mereces viver, sem ninguém que te ajude!
Eu? Eu?? Ajudar-te?!
Nunca! Jamais!
Vou rir-me de ti! Se te vir a rastejar na rua, vou cuspir-te em cima!
Abandonaste-nos a todos! A minha mãe, ao meu irmão, aos cães e às gatas!
Um dia, vou fazer o mesmo contigo...
Até um de nós morrer, vou infernizar a tua vida!...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Ui! Cala-te, boca!

Podemos confiar em alguém? Francamente: podemos?
Podemos, quando as nossas palavras andam de boca em boca por aí? Quando os nossos amigos são mais amigos de outra pessoa?

Não! É claro que não! Se às vezes nos traímos a nós próprios, que fará o nosso amigo!

Porque os sentimentos são frágeis e efémeros, e as nossas certezas não valem nada, temos de desconfiar de toda a gente: até do nosso amigo; mesmo do nosso amor.

Somos todos maus. Nem que seja só um bocadinho de nada, mas somos. Às vezes não sabemos bem porquê, ou para quê, mas somos, pronto. Lá no fundo, devemos gostar.
Se ao menos fossemos a única pessoa má no mundo!...
Mas não somos: por isso, o melhor é termos os olhos bem abertos, os ouvidos à escuta e a boca caladinha!

domingo, 2 de maio de 2010

Corre por aí algures uma alegria,
Eu sei, porque a encontrei um dia:
Não tem dono nem juízo,
Não ama e não teme.
Seus sentimentos são como um trovão,
Luminosos, arrebatadores e fogazes,
Cheios de euforia e de paixão!
E nunca se cansa,
Nunca se aborrece,
Em cada passo demora um instante só,
sem sequer se lembrar de olhar para trás!

quinta-feira, 25 de março de 2010

Ao colheres um fruto,
Come-o e aprecia o seu sabor,
Depois, deita-o fora e esquece-o,
Percorre o resto do pomar sem tornar a pensar nele;
Fá-lo antes que ele te caia da mão
E tenhas de te curvar para o tirar do chão,
Coberto de terra, sem que o possas pôr na boca!

terça-feira, 16 de março de 2010

Os Desamparados

Às vezes, apetece-me chorar como um bebé insatisfeito até alguém se apiedar de mim e me atender.
Gostava de adormecer nos braços dessa pessoa sabendo que posso confiar nela, e acordar desperta e contente, sem um único problema em que pensar, como se o meu protector os tivesse resolvido a todos durante o meu sono, e ao acordar, eu pudesse começar uma vida nova, melhor que a que eu tivera antes.
Então eu ia poder ser leve e luminosa, como os felizes... Esses, parece que nunca têm problemas. Inveja-mo-los por isso, temos raiva da sua inconsciência e desprezamos a usa simplicidade!
Esses, sim... têm uma mão que segura a deles e os guia através dos melhores caminhos, braços fortes que lhes pegam ao colo ou às cavalitas quando a estrada é difícil; enfim, alguém que os ampare até serem capazes de andar sozinhos.
Nós, não. Essa mão deixou-nos. Abandonou-nos, e agora nós temos que rastejar pela estrada fora, empurrando-nos e puxando-nos uns aos outros, a espremer os músculos até perdermos as forças.
Às vezes penso que a única coisa que nos impede de enlouquecer, é sabermos que se isso acontecer a um de nós, a jornada será ainda mais difícil para os outros.


Não há ninguém que nos ajude?...
Que tenha pena de nós?...
Eu também quero uns braços seguros que guardem, pelo menos agora, enquanto os meus não são suficientemente fortes para me proteger.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Moro no topo de uma altíssima torre. Através das janelas sujas, eu consigo ver o mundo, envolto num espesso nevoeiro. Como algumas coisas se veêm muito mal, ou nem sequer se veêm, eu imagino-as.
Poucas pessoas passam por aqui, e costumam ignorar a minha torre. Mas também já houve quem se interessasse por ela: contornaram-na repetidas vezes, indagando o que haveria lá em cima. Os mais curiosos (ou fascinados), atreveram-se a escalar a parede de pedra.
Ao chegarem ao cimo e depararem-se comigo, perguntaram-me: "Vives aqui presa? Porquê?"
E eu respondi que não sabia.
Não me entendo: eu quero conhecer o mundo lá fora, e até posso fazê-lo: há na minha torre uma porta, por onde eu poderia sair. Mas a porta só pode ser aberta a partir de dentro, e, cada vez que decido fazê-lo, eu hesito, tenho medo e vergonha, e a madeira fica tão pesada que por mais que empurre ou puxe a maçaneta, as dobradiças não cedem, e eu acabo por desistir.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Eu invejo os poetas. Porque num só verso, põem coisas que não cabem na minha prosa, e falam de emoções que não têm nome, e descrevem-nas com a exactidão com que eu não consigo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Algumas coisas em que eu acreditava piamente quando era criança

1 - Quando era criança, tinha horror a ter de passar pela puberdade: toda a gente dizia que era um período muito duro... Eu pensava que era uma fase muito difícil porque, independentemente do que uma pessoa fizesse, ficava muito, muuuito pobre.

2 - Pensava que os adultos penduravam aquelas bolas vermelhas e brancas no cabos de alta tensão para os enfeitar.

3 - Os adultos sabiam tudo. Por exemplo, se eu lhes perguntasse qual era a raiz quadrada de 957629058235926+421356/434853 ao cubo, eles responder-me-iam no mesmo instante, porque haviam decorado todos os resultados de todas as contas na escola.

4 - Tudo o que acontecia nos filmes era real. Por isso eu tinha muita pena dos actores que "morriam". Achava-os estúpidos por se sacrificarem daquela maneira para se tornarem famosos, porque, na verdade, já eram tantos que tentavam alcançar a fama daquela maneira que já ninguém lhes ligava nenhuma.

5 - Todas as pessoas eram boas. Só que havia alguma que era má e que andava a poluir o mundo. Um dia, enquanto esperava no carro pela minha mãe, que tinha ido a uma peixaria, vi passar uma mulher loira que estava a comer um pacote de bolachas. Quando terminou, deitou o plástico para o chão. "É aquela!" pensei.

6 - O sabor das comidas de que eu não gostava era diferente para as pessoas que gostavam. Por exemplo, brócolos sabiam-lhes a batatas fritas.

7 - Todos os adultos comiam piri-piri e bebiam café. Para mim, um adulto que não o fizesse, não era um verdadeiro adulto. Acreditava nisto porque os meus pais comiam os dois muito piri-piri todas as refeições, mas eu e o meu irmão, como éramos pequenos, não conseguíamos suportar o sabor a picante. Quando a minha mãe me contou que em Moçambique se comia piri-piri desde os seis anos, fiquei muito invejosa das crianças de lá: eu era mais velha que eles e ainda não conseguia. Achava que todos os adultos bebiam café porque os meus pais o faziam, mas eu e o meu irmão não estávamos autorizados sequer a prová-lo. Certo dia, os meus primos contaram-me, muito orgulhosamente, que já tinham bebido leite com café. Achei inadmissível que eles já tivessem bebido café e eu não, sobretudo o Alexandre, que era o mais novo dos cinco. Quis logo beber um galão, e, quando mo permitiram, senti-me muito importante.

8 - Quando íamos às compras e o empregado da caixa nos entregava algum troco, eu achava que ele estava a ser simpático e a devolver-nos o dinheiro.

9 - Se se usasse um cartão multibanco para fazer compras, não se pagava.