domingo, 27 de março de 2011

A Catarina telefonou-me à pouco a contar-me que tinha encontrado um cão abandonado ao pé de casa dela: deixaram-no juntamente com uma jaula num canteiro diante de uma garagem. O bicho estava cheio de medo, todo encolhido no seu cantinho. Segundo a Catarina, ele não se mexia muito.
Alguns vizinhos aperceberam-se que a minha amiga e a respectiva mãe estavam muito interessadas no cão, e abriram as janelas para lhes contarem, empoleirados no parapeito, que ele já ali estava desde ontem ou anteontem, precisamente no mesmo sítio, e que já lhe tinham dado alguma comida (de gato, supôs a Catarina, uma vez que o vizinho que o alimentou só tem gatos de estimação e por causa deles não deu abrigo ao cão).
Percebi imediatamente o que a Catarina queria: pensou que talvez pudesse deixar aquele pobre animal em minha casa, num canil, que até pode não ser muito mais confortável do que a rua, mas é sem dúvida mais seguro. Tive imensa vontade de lhe dizer: "Trá-lo para cá, damos-lhe ração, água, e uma manta com uma cestinha", mas sabia que não podia... Afinal, esta quinta não é minha, mas do meu padrasto, que não o aceita cá nem por uma noite. Não o levo a mal, está a atravessar muitos problemas financeiros e alimentar mais um cão seria muito difícil. Por isso, limitei-me a pedir-lhe que não o deixasse na rua. Mencionei uma loja onde uma tia minha cujos gatos procriam como coelhos costuma entregar ninhadas inteiras de pequenos felinos de todas as cores: talvez eles aceitassem o cão. Pedi a Catarina que mo descrevesse,uma vez que para ser aceite na loja o animal tinha de ser dócil, e uma vez que ela ainda tinha algum receio de se aproximar dele, o método mais eficaz para descobrir o seu temperamento seria identificar a raça.
-Sei lá... -disse ela. -É castanho, tem uma mancha branca... As orelhas caídas... Acho que é rafeiro.
-É grande?
-Eh pá não sei...
-É do tamanho de um Golden?
-Um bocadinho mais pequeno, mas não muito.
-Sabes a idade? Consegues perceber pelo focinho de ainda é cachorro?
-Não, não faço ideia.
Contactei a tal tia que costuma ir deixar gatinhos À loja de animais e ela revelou-me que não aceitam lá cães, apesar de se poder deixar uma fotografia e um anúncio para adopção do animal na página do facebook da loja.
Quando voltei a telefonar À Catarina para lhe contar isto, ela revelou-me que o cão já a seguia de um lado para o outro, e se encostava a ela e lhe lambia as mãos, muito feliz. Era dócil, então.
Apesar de a mãe da Catarina ter algum medo de cães e preferir vê-los longe dela, cedeu aos pedidos da filha, que como eu adora cães, e concordou em alojar o animal só por uma noite, desde que a filha o vigiasse e na manhã seguinte o fossem deixar a uma clínica veterinária: um médico seu amigo já lhes disse que está disposto em encontrar uma família para o cão.
Dentro de casa, o cãozinho assustado tornou-se um animal confiante e cheio de energia, que começou a explorar as divisões de rabo no ar a abanar.
-Agora o cão está hiper-activo!- disse-me ela. -Anda todo feliz de um lado para o outro!
-Então, está contente: "Yay, estou outra vez numa casa, com pessoas"!
-Pois, mas não pára quieto... E subiu para a minha cama.
-Hããã... Pois, se calhar é melhor tirares o cão da tua cama...
-Como?
-Sei lá, puxa-o, empurra-o...
-E se ele me morde?
-Pois... Ele parece meiguinho, pelo que tu disseste.
-Eu não vou fazer isso a um cão que não conheço.
-Mas também não é bom teres um cão que não conheces na tua cama.
-Bolas. Ele adorou a minha manta, está aqui todo feliz a espreguiçar-se. Eh pá, eu gosto desta manta... - desabafou ela, cheia de medo que o cão lhe estragasse a manta -Olha, e ele tem uma mancha na pata, será que aquilo é uma carraça? Eu não quero uma carraça no meu quarto.
-Não consegues ver?
A Catarina tinha medo de lhe mexer, mas conseguiu aproximar-se o suficiente para perceber que não se tratava de uma carraça, mas de uma ferida.
-Parece que foi cortado... -descreveu ela.
-É na almofadinha? Se calhar ele cortou-se num bocado de vidro...
-Não, tu não percebes, é um corte bué certeiro... Tipo, vê-se a carne, falta um bocado...
-'Tás a dizer que alguém cortou o cão?!
-Não! Por que é que alguém havia de cortar um cão? - não disse nada, mas recordei o caso de um cachorrinho chamado Coockie que apareceu na União Zoófila sem uma pata, que tinha sido cortada por alguém que o usara para praticar voodoo. - Imagina, é como se ele tivesse uma feria, tivesse crescido crosta, e depois a crosta tivesse sido arrancada.
-Ah... -não parecia tão grave quanto eu pensara, e estava prestes a pedir à Catarina que desinfectasse a ferida quando de repente a mãe dela começou a falar.
Deram água ao cão, que bebeu vorazmente (devia estar quase desidratado... muitas vezes, as pessoas dão comida aos animais abandonados, mas esquecem-se que além de fome, eles têm sede, e não sabem onde procurar água), e deram-lhe frango cozido, ao qual tiraram minuciosamente os ossos. OS cão engoliu a carne surpreendentemente rápido:
-Ok... ele está a comer. -disse-me Catarina.
-Óptimo. Se eu fosse a ti, aproveitava para fechar a porta do quarto, para ele não voltar a subir para...
-Ele já comeu! - exclamou ela.
Nem queria acreditar. Como é que era possível? Voltaram a encher o prato e novamente ele devorou a comida em menos de nada.
-Coitadinho, devia estar esfomeado... -dizíamos eu e a Catarina.
Segundos depois, quando ele acabou, correu para o quarto da Catarina e voltou a saltar para a cama. Enquanto a Catarina lhe ordenada que fosse para o chão com a voz mais ameaçadora de que era capaz, a mãe dela encheu o prato do cão com cabrito e batatas assadas, que a Catarina usou para o atrair para fora da cama.
Mais uma vez, comeu tudo em menos de nada, e voltou para o quarto.
-Oh meu Deus, ele está a tentar fazer sexo com a minha almofada!
-GAH! Tira daí a tua almofada!
-A minha cama está cheia de almofadas!
-Tira-as daí! E não durmas com elas!
-Ponho-as aonde?
-Sei lá! Empilha-as no guarda-fatos!
Ela conseguiu tirar o cão da cama e pouco depois ouvi-a dizer:
-Merda.
-O que é que ele fez?
-Literalmente. - disse ela, interrompendo-me subitamente a meio da frase.
-Oh... Ele não está educado para fazer as necessidades na rua.
-Mas que raio de donos eram esses?!
-Catarina, há montes de pessoas assim! Não educam os cães, e depois quanto eles crescem e deixam de ser cachorrinhos fofinhos as asneiras que eles fazem deixam de ter piada e os donos acabam por se fartar deles e abandonam-os.
-Este cão está-me a dar vontade de chorar...
-A mim também.
Depois de uma grande confusão, decidiu-se que o cão passaria a noite na varanda da madrinha da Catarina, que mora no mesmo prédio que ela.
Amanhã, ele irá para o veterinário, e se tiver sorte, conseguirá uma família paciente que o acolha como todos os cães merecem.
Se eu pudesse, ficaria com ele...