domingo, 18 de julho de 2010

Quem diria

Há alguns anos, quando eu era criança, tinha uma casa de bonecas, equipada com a mesma mobília que tem uma casa verdadeira: camas, mesas, cadeiras, ... e uma pequena televisão, com um autocolante de duas torres imensas a imergir de uma cidade, a fazer de ecrã.
Quando os primos brincavam, o programa preferido dos nossos brinquedos era "O programa das Torres que Caíram". As barbies e o Action Man não perdiam um único episódio, e quando mais tarde se encontravam com os amigos, falavam sempre sobre a série.
Adivinhem quais eram torres...
World Trade Center.
Foi arrepiante quando anos mais tarde elas caíram mesmo...

Bons velhos tempos...

Penso que eu, o meu irmão e os nossos primos éramos crianças bastante organizadas. Exceptuando os nossos quartos, gostávamos de ter tudo no sítio, cada coisa no seu lugar. De tal maneira que chegámos a numerar as nossas brincadeiras.
Parecia uma ideia brilhante, como se atribuir números nos facilitasse a vida (para quê dizer: "vamos brincar às barbies e aos action men" quando: "querem brincar à brincadeira três" é muito mais fácil?). Além do mais, fazia uma mera brincadeira parecer uma coisa séria (os números estão sempre relacionados com coisas sérias), quase de adultos. E até parecia um código secreto, que mais ninguém entendia. Isto agradava-nos particularmente: na altura, pensávamos que se falássemos em frente aos adultos com palavras que eles não compreendiam, eles iam pelo menos tentar descobrir o seu significado, como se lhes interessasse para alguma coisa as parvoíces que nós andávamos para ali a dizer e não tivessem nada mais importante ou interessante para fazer.
A ideia foi por água abaixo quando nos apercebemos de que nós próprios não conseguíamos decorar os números de todas as brincadeiras:
-Querem brincar à brincadeira nove?
-Quê, ao Monopólio?
-Não, ao Quarto Escuro!
-Pensava que o quarto escuro era a brincadeira dois...
-Não era a doze?
Foi uma confusão. Dentro de pouco tempo voltámos a referir-nos às brincadeiras como costumávamos fazer antes de nos termos lembrado de numerá-las, até porque já só sabíamos o número de uma brincadeira; a brincadeira sete: descansar.
Era aquela a brincávamos mais, nas tardes de Verão em casa dos avós. Isto porque o calor nos fazia moles, e às quatro da tarde era a hora da sesta da avó. Era um momento sagrado para ela, pelo que não tolerava o menor som.
Assim, íamos os quatro para o quarto e olhávamos uns para os outros até um de nós dizer:
-A que é que querem brincar?
-À brincadeira sete.
Então deitávamos-nos todos na cama de casal, três com a cabeça nas almofadas e o ultimo a chegar à cama aos pés dos outros, porque a cama não era suficientemente larga para todos.
Era uma brincadeira muito aborrecida (o Alexandre não gostava nada dela) mas às vezes até sabia bem...
Hoje, ao lembrar-me dela, apercebi-me de que o seu numero corresponde ao da perfeição...
Éramos geniais, mesmo sem querermos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

José Saramago

José Saramago morreu.
Que estranho... É uma sensação semelhante à que tive quando ouvi nas noticias que Michael Jackson tinha morrido: parece impossível. Pessoas dessas não morrem.
Os amigos e a família decerto ficaram desolados, e os inimigos, que não lhe faltavam, devem ter suspirado de alívio ou até rido. Acalmem os ânimos, que dentro de muito ou pouco tempo, pode ser que tenham de se encontrar com ele, e a partir daí é para sempre. Os restantes, ficaram apreensivos uns, satisfeitos outros.
As livrarias expuseram a obra de Saramago nas montras e dentro de algum tempo os livros hão-de ser vendidos por mais alguns euros juntamente com jornais ou em fascículos.
Vivo, nunca deixou que se esquecessem dele, e agora que está morto, a sua obra, o programa de Língua Portuguesa por que se regem as escolas, e uma série de outras coisas, hão-de certificar-se de que continuaremos a lembrá-lo.
Não tenho muito a dizer dele como pessoa. Gosto muito da sua honestidade. Há quem diga que ele provocava, como uma criança, para depois ver o que acontecia, mas a mim parece-me que não era homem para isso: não precisava disso. Escrevia o que pensava, e pronto, o que os outros achavam do assunto não lhe interessava.
Quanto há sua obra, o que mais admiro são os temas, e a maneira como são tratados: a cabeça de José Saramago, parece-me, funcionava como um simulacro. "E se toda a gente ficasse cega?...", "E se a Península Ibérica se separasse do resto da Europa?...".
O seu estilo, também é de louvar, não é qualquer um que escreve como ele. Porém, é o mais fiel à fala e ao pensamento: sem pontuação, e cheio de divagações. Muitas vezes, é o desenvolvimento de uma reflexão...
Não tenho muito mais a dizer dele. Só posso dizer o que muita gente diz: que é uma pena, e que Portugal perdeu um grande escritor...
Oxalá alguns se tivessem dado conta antes.
Há algumas semanas, estava no jardim a estudar para a frequência de história da arte, rodeada dos meus cães, quando me apercebi de dois melros que voavam muito perto do chão, piando alto e sem parar.
Dois dos meus cães levantaram-se num salto e correram atrás deles. Não me preocupei: são pássaros. Sabem voar e são rápidos. Dois cães preguiçosos como os meus, que se cansam depois de correr uns metros, não são perigosos para melros.
Só que no momento seguinte, o meu tio, que vinha carregado com um cesto de roupa, disse:
-Carolina, acho que o Alex e a Nicky apanharam um pássaro!
Voltei-me na cadeira e vi Nicky correr vitoriosa para mim, segurando algo entre os dentes:
-Nicky, NÃO! -gritei-lhe.
Imediatamente a cadela largou a sua presa e ao ver-me correr para ela fugiu.
Era um melro bebé.
Tirei-o do chão, segurando a cabecinha frágil enquanto lhe murmurava que estava tudo bem.
O pássaro fechou muito devagar o bico, e encolheu as patas como se fosse uma pessoa a encolher-se de dor. Lentamente, fechou os olhos.
Por fora, parecia bem. Só se diria que morrera porque os meus cães o tinham apanhado por causa das penas, que estavam encharcadas de baba. Devia estar partido por dentro, ou então foi o coração que não aguentou.
Imagine-se o que seria, estarmos nós desprotegidos e incapazes de fugir, e vir um bicho enorme caçar-nos, prender-nos entre os dentes cortantes e esmagadores, apertando-nos entre o céu-da-boca e a língua e sufocando-nos com o seu bafo imundo, diante dos olhos dos nossos pais, que observavam tresloucados e impotentes!
Esperei um bocado com o corpo nas mãos, na esperança que tivesse desmaiado.
Mas nada aconteceu.
Era tão pequenino ainda, coitado... O ventre ainda estava coberto de uma penugem fofa em vez de penas, e a pele era lisa debaixo das asas e no pescoço.
Voltei a pousá-lo no chão e enxotei os meus cães. Depois, fui-me embora e continuei a estudar. Dentro de pouco tempo, as formigas começariam o seu trabalho.