quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Uma conversa interessante

Vou-vos contar algo que me aconteceu há já umas noites, mas que não tive coragem de revelar até agora: estava às voltas na cama a pensar na quantidade de trabalho que tinha em atraso, e por isso não conseguia adormecer. Mas também estava demasiado cansada para trabalhar...
Decidi que tinha de pensar noutra coisa qualquer, algo que me ajudasse a relaxar e a adormecer de uma vez por todas: tentei lembrar-me das coisas boa que me tinham acontecido no dia anterior, suprimindo todas as memórias referentes à faculdade.
Infelizmente não tinha sido um dia muito bom, porque o passara a tentar trabalhar e a ser incapaz de o fazer e a tentar descansar sem o conseguir porque não parava de pensar que devia estar a trabalhar.
"Bem, pelo menos comecei a ler um livro novo..." pensei. Esse tal livro era "A Divina Comédia", de Dante, e mesmo que decifrá-lo seja um desafio difícil de superar, eu até me estava aguentar.
Então comecei a pensar no diabo, e em toda a história de Lúcifer, o anjo caído.
Começaram a acumular-se montes de dúvidas na minha cabeça, e acabei por ficar mais inquieta do que quando estava preocupada com os trabalhos em atraso. Quem me dera poder telefonar ao Tio Grande: a cabeça dele é equivalente não a uma enciclopédia, mas a uma biblioteca inteira. Só que eram três da manhã, e eu nem quero imaginar o que ele me diria se eu lhe telefonasse a essa hora, ainda por cima para fazer perguntas sobre Satanás... Acho que me mandava para o Inferno para poder falar pessoalmente com ele. "Olha..." matutei, sorrindo no escuro " até nem era má ideia, não há ninguém que me possa responder melhor que o próprio Méfistófeles!".
-Diz lá o que é que queres saber. - ordenou secamente uma voz.
Fiquei fria e dura como uma pedra, e tive medo até de respirar ou piscar os olhos. Durante algum tempo permaneci imóvel sob os lençóis, e só depois de repetir várias vezes para mim mesma que tinha sido imaginação minha é que tive coragem de, muito lentamente, tactear a mesinha de cabeceira à procura do interruptor do candeeiro.
Quando a luz se acendeu, deparei com um homem sentado aos pés da minha cama, a olhar para mim como se quisesse que eu me despachasse e me recompusesse o mais rapidamente possível, porque o estava a fazer perder o seu tempo.
Eu tinha os olhos tão arregalados que parecia que a qualquer momento poderiam cair das órbitas. Pálida como papiro, e a tremer tal e qual uma vara verde, balbuciei:
-T-t-tomás...?
Mas o meu irmão não acudiu ao meu chamamento, até porque não o deve ter ouvido.
Entretanto, o homem revirou os olhos e soltou um breve suspiro:
-Vá lá, despacha-te mas é e faz-me as perguntas que tens a fazer...
Devagarinho, e sem tirar os olhos dele, murmurei:
-Quem és tu?
-Pfft... Sinceramente, dadas as circunstâncias, esperava que pudéssemos passar à frente das introduções e começar pelo que realmente interessa.
Durante um bocado ficámos a olhar um para o outro, e quando ele percebeu que eu não ia dizer mais nada até ele me responder, retorquiu:
-Eu sou Satanás.
-O diabo?
-Sim.
-Aah...
Não tinha nada haver com a imagem do terrível Príncipe das Trevas que eu conhecia: não tinha chifres, nem patas de boda, nem asas de morcego. Ainda me inclinei a ver se via uma cauda, ou um tridente encostado à borda da minha cama, mas nem sinal. Era um homem perfeitamente normal, e bonito, até.
O candeeiro irradiava uma luz fraca, e por isso eu não sabia se o seu cabelo era negro, ou ruivo, e... Bem, não se imaginei ou se vi, mas pareceu-me que a madeixas se agitavam continuamente, de uma maneira muito subtil, como se fossem labaredas. Os olhos eram iguais aos de Blimunda, porque era impossível dizer que cor era aquela: tanto me pareciam cor-de-laranja, flamejantes, como cinzentos, pálidos como gelo.
-Então! - gritou, enfurecido - Querias saber tanta coisa, e agora ficas calada?!
Atrapalhei-me e esqueci-me de todas as perguntas. Desejei desesperadamente lembrar-me de uma, qualquer uma, mas não me ocorria nada.
Por fim, disparei:
-Porque é que foste expulso do Céu? O que é que tu fizeste? - estremeci e gaguejei umas quantas sílabas, antes de corrigir: -O que é que o senhor fez para ser expulso do Céu?
-Eu ambicionava o poder de Deus.
-Sim, mas... porquê? Tu eras o braço direito dele! Ele fez-te o mais bonito e o mais forte de todos os querubins, Ele... Ele adorava-te!
-Sim, é verdade. Só que, à medida de o tempo passava e eu observava a maneira como Ele regia o Seu reino, apercebia-me de coisas ultrajantes e comecei a pensar que ou o Seu propósito fora corrompido, ou então nunca tínhamos tido o mesmo objectivo.
»A injustiça com que tratava as coisas que fizera repugnava-me: como ousava o Todo-Poderoso construir uma criatura dotada de tantas características e capaz dos mais diversos comportamentos e sentimentos, se depois resolve que grande parte das suas capacidades são... "pecaminosas"?
-Espera... O que tu queres dizer é que achas que se Deus queria que fossemos, humm... "Perfeitos", então devia ter-nos logo "perfeitos"?
-Exacto. Que direito tem ele de criar um ser "imperfeito" e depois exigir-lhe que seja "perfeito"?
-Pois... Pois, acho que tens razão: ele não tem o direito de o fazer, até porque quando morremos julga-nos cá de uma maneira... Os que se portaram assim para o Paraíso, os que se portaram assado para o Inferno.
-Precisamente! - cruzou a perna e sibilou: -Tenho razão, não tenho?
-Humm, não sei... - hesitei, recordando-me de quem ele era - Conta lá o resto da história.
-Bom... Como já disse, eu estava indignado com a maneira como Ele subjugava a própria criação, convertendo-a num rebanho de cordeirinhos submissos. - proferiu estas ultimas palavras com desdém, arreganhando o canto da boca - Agora falando exclusivamente do Ser Humano... A mim agrada-me a complexidade da vossa espécie, e posso afirmar com toda a honestidade que admiro cada uma das vossas múltiplas facetas. Custava-me muito ver-vos reduzidos ao pouco que ele vos queria tornar, percebes?
-Acho que sim...
-Eu queria dar-vos a liberdade de que vocês precisam para serem tudo aquilo que são, mas a única maneira de o conseguir era destronar Deus, e ocupar o Seu lugar. Revelei a alguns anjos o que pensava do Todo-Poderoso, e muitos concordaram em apoiar-me e à minha causa. Eu e os outros rebeldes enfrentámos o Senhor e aqueles que lhe permaneceram fiéis, mas infelizmente...
-A batalha correu mal para o vosso lado. - terminei.
-Sim, e fui expulso do Paraíso, juntamente com os meus seguidores.
-Ok... Se eu entendi bem, tudo o que fizeste foi por amor à humanidade, certo?
-Sim.
-Então porque é que agora torturas as almas condenadas por Deus? Segundo o que tu me disseste, opões-te ao julgamento das nossas acções, porque isso nos limitava. - ele começou a abrir a boca, para responder, e erguer muito lentamente o dedo indicador, como se quisesse acrescentar mais algum argumento ao seu discurso - Então por que é que nos castigas pelos nossos actos?
-Issooooo...É um mito. O "Inferno" é na verdade um lugar onde os seres humanos que optaram por viver de acordo com aquilo que são, podem também desfrutar da morte como aquilo que são, para toda a eternidade.
-Como "pecadores"?
-Não, como criaturas inteiras, com "virtudes" e "pecados"! - exclamou ele, elevando um pouco o tom de voz.
-Queres então dizer que no Inferno ninguém é torturado, simplesmente faz o que bem lhe apetece e dá na gana?
-Sim. - respondeu, com uma suavidade forçada.
-És o Diabo; estás a mentir.
-Menina! Que preconceituosa!
-Olha, eu gostava era de poder falar com Deus! Também queria perguntar-lhe umas coisinhas e Ele sim, dizia-me a verdade de certeza absoluta!
-Ah! Fia-te nisso... Deves pensar que ele não aldraba um monte de pessoas, para conseguir o que quer...
-Não lhe dês ouvidos, Carolina! - ordenou uma voz ao meu lado, fazendo-me saltar na cama.
Tratava-se de um jovem de feições delicadas, com uma densa cabeleira loira que lhe caía em largos caracóis sobre a testa. Na altura não reparei, mas aposto que tem os olhos azuis.
-Oh meu Deus!... - balbuciei.
Aos pés da cama, Mefistófeles suspirou e abanou a cabeça de um lado para o outro com uma expressão de aborrecimento.
-Não propriamente... - disse o rapaz ao meu lado - Sua Santidade está sempre muito ocupada, e por isso, apesar de ser omnipresente, só se encontra materialmente com um dos indivíduos da Sua criação muito raramente. Eu sou o teu Anjo da Guarda, Miguel. - apresentou-se.
-Oh! Bem, prazer em conhecer-te Miguel. Hã... Ouve, desculpa-me a ousadia, mas... - pensei durante um bocado se seria uma boa ideia fazer aquela pergunta e apesar de concluir que não o era, deduzi que ele seria indulgente, uma vez que era um anjo - ... Deus não pôde vir?
-Bem... Este encontro não estava programado, pois não? - atrapalhou-se Miguel - Para além de que, como já te expliquei, Deus Todo-Poderoso costuma estar demasiado ocupado para comparecer neste tipo de... reuniões.
-Sim, mas ele veio. - disse eu apontando para o diabo. - Tenho a certeza que também anda sempre muito atarefado, e que podia estar estar agora mesmo num lugar bem mais interessante do que o meu quarto... Como uma missa satânica, por exemplo.
-Por exemplo, por exemplo... - concordou Satanás, assentindo com a cabeça.
-Carolina, para ele não há sítio mais interessante do que aquele onde se encontra uma alma que possa ser corrompida.
-Há uma data de almas assim no mundo!
-Uma delas tinha de ter o azar de se encontrar com ele frente a frente e foste tu. Ele não veio aqui para te esclarecer, mas sim para se desviar do bom caminho. Ignora-o, e escuta-me a mim, que sou o teu Anjo-da-Guarda e quero o teu bem.
"Não tens feito um trabalho muito bom" pensei, mas preferi calar-me: pelo menos agora ele estava ali:
-Então vieste para responder às minhas perguntas?
-Bem...
-És ao menos capaz de responder a algumas delas em nome de Deus?
-Suponho que sim... - cedeu ele, depois de olhar de soslaio para o Diabo. -Então diz-me lá, o que é que tu queres saber?
-Gostava de perceber por que é que Deus não nos fez logo "perfeitos", ou melhor, como Ele queria que fôssemos.
-Deus dotou todas as criaturas de livre arbítrio: a Sua vontade é que elas escolham praticar o bem, em vez do mal.
-Mas que escolha é essa, se, ao optar por praticar aquilo a que se chama "mal", se é recambiado para o Inferno depois de se morrer?
Lúcifer sorriu para o anjo, como se o desafiasse a responder àquela pergunta, e Miguel demorou algum tempo a pensar na resposta:
-Carolina, não achas que quando tomamos uma decisão, devemos ter consciência das respectivas consequências e ser responsabilizados pelas nossas acções?
-Sim...
-Aí tens a resposta. - concluiu ele, muito feliz consigo mesmo, piscando-me o olho.
-Pois mas... Uma eternidade de sofrimento? Isso é sádico! Não será um castigo demasiado severo?
-Achas que um assassino deve ficar impune? Ou um ladrão, ou um traidor, ou um adultero, ou um promiscuo?
-E se um homem matar para salvar alguém? E se o ladrão roubar para alimentar a família?
-São casos muito complexos, mas sempre julgados com justiça: dependem de uma série de factores... Depende de quem o homem mata e de quem o homem salva, depende de quem rouba e para quê...
-Então uma pessoa promiscua, que apesar de o ser, não magoa ninguém?
-Se essa pessoa se arrepender, tal como todos os outros pecadores, será perdoada.
-E se ela se quiser arrepender, porque sabe que deve fazê-lo, mas não conseguir?
-É impossível uma pessoa querer arrepender-se e não o conseguir... Ou o que ela quer é o perdão concedido sem arrependimento, ou então está arrependida, e ainda assim, pelos mais variados motivos, não o quer aceitar.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O mundo encantado dos brinquedos é no Continente onde tudo tem mais fantasia!

Não aguento mais...
Estes últimos anos têm sido um pesadelo, e eu não aguento mais!
Nunca me tinha passado pela cabeça que a Popota fosse um risco para a minha carreira e para mim: quando a conheci, não passava de uma miúda gorda e mimada que vivia com os pais no Zoo de Lisboa, sempre a tagarelar sobre as porcarias que via na MTV.
Foi uma surpresa quando um dia liguei a televisão e a vi a anunciar os brinquedos do Modelo... Se era mesmo isso que ela estava a fazer. Não aparece um único brinquedo naqueles anúncios...
Seja como fôr, contactei imediatamente o meu agente, que me tranquilizou dizendo que a Popota era uma fraude: não era ela a cantar nos anúncios, limitava-se a fazer play back (é por isso que nunca abre a boca quando aparece em programas transmitidos ao vivo), e, apesar de ela até dançar bem, era necessária uma equipa inteira especializada em efeitos especiais para não se ver a sua celulite a abanar.
Senti-me melhor, mas passados poucos dias começaram a pressionar-me: ao que parece, o que os miúdos querem é ver uma gaja boazona a abanar-se nos anúncios natalícios (ou talvez os pais, já que são eles que fazem as compras), e as vendas começaram a piorar para o Continente...
Ameaçaram-me: "Ou fazes as operações, ou perdes os emprego! Há montes de avestruzes por aí; mais novas que tu!".
Este é o meu emprego... Há já muitos anos. Por isso, aceitei.
Submeti-me a várias dietas... A maioria baseava-se em passar fome e vomitar. Comecei a tomar comprimidos de emagrecimento e a praticar exercício físico intenso.
Fiz lipoaspirações, implantes mamários, e tirei uma série de costelas, para ficar com a cintura mais fina. Até cortei a cauda...
Mas o que me custou mais me custou, foi amputar as minhas pernas e substituí-las pelas daquela pobre modelo que raptaram... Sei que a mataram, e não há um dia que não pense nela.
Passei o ano inteiro a aprender a andar novamente, e, quando as filmagens para o anuncio começaram, descobri que este ano, em vez de trabalhar com crianças, ia lidar com jovens adolescentes com aspecto de "xungas".
Apesar de tudo, fiz o que me pediram...
E, mais uma vez, a Popota arrasou. Apareceu nas roupas da estrela mais extravagante do momento, a dançar e a fingir que canta, e, não sei como, teve muito sucesso com isso.
O meu agente já me telefonou, para me avisar dos sacrifícios que deverei fazer durante o próximo ano.
Chega.
Quando lerem isto, já estarei morta. Uma vez que não tenho familiares próximos, deixo todos os meus bens à minha grande amiga, A Vaca que Ri.

Leopoldina.